quinta-feira, 10 de abril de 2008

fado precoce em tons de azul

A cidadelha obscura deitava-se enquanto o céu arrefecia e se tornava escuro, em tons azul-violeta com luzes crepusculares à medida que a noite se adivinhava. Quando todos abandonavam os cantos mais ousados e as esquinas mais ocultas, Belo, de cigarro aceso nos lábios carregados de palavras surdas, dava vida ao seu vulto negro.Com o longo cabelo a cair-lhe sobre os ombros e pendendo-lhe para a face, ele avançava de máquina ao peito para a aresta mais soturna do bairro mais lúgubre da pequena cidade podre ...
Vivia para ver tudo aquilo mudar, crescer, talvez à velocidade que respirava um cigarro ou através de anos e anos de história registada em mais uns quantos livros mostrados às crianças, posteriormente, para que saibam os marcos do passado, sintam a evolução.
Enquanto aguardava esse utópico dia, voltava, uma noite atrás da outra, aos lugarejos mais recônditos para fotografar. Não usava cores, apenas o preto e o branco. Apenas o reflexo de uma dor profunda de um ego destruído, de um corpo desleixado, sequioso daqueles áureos sentimentos, daqueles gritos de revolta adolescente, proferidos aos sete ventos, sedentos de mensagens audaciosas dos putos convictos! Um contraste do seu imaginário com a mais pura das realidades ... a natureza corrompida, as crianças que na rua fumam mais um, o fado precoce esperando alcançá-los na overdose.
Embora também tendesse para esse caminho quando tudo perdia o rumo, quando a mais insignificante luz se apagava, sabia o significado do primeiro contacto com a droga nestas classes devastadas pela pobreza e falta de ajuda social. Tudo começaria com um «Prova!» e depois um «Queres outro?» ... Depois do ecstasy, da cocaína, da heroína, o final mais temido arrebataria a vida de jovens de escassas oportunidades ...
Fumava mais um cigarro enquanto vagueava pela ruela turva de cheiro a enxofre e doenças malignas. Num canto, mais um jovem a "meter p'rá veia", um outro a preparar aquela que Belo não sabia que seria a sua injecção. Fotografava cada um dos ocupantes. No entanto este último chamava pela objectiva de forma arrepiante, como que pedindo que todo o processo fosse gravado numa sequência de imagens. Belo, obedece! A sua presença, já habitual, não incomoda ninguém, pois todos olhavam para ele como mais "um daqueles tarados" que deambulam na penumbra. Começa, então, a captar a droga, o sumo ácido do limão que escorre até à colher suja, o isqueiro, toda a miscelânea a ferver, a seringa, o elástico que puxado pelos dentes aperta o braço magro e pisado do "junkie", o sorriso irónico, mais um "chuto" ... o prazer, a satisfação ... a satisfação, a dor, a corrosão, o abandono da vida mundana. O resultado de uma injecção letal, a pena capital, a morte.
Mais um corpo ao abandono, mais um entre muitos que ali permanecerão eternos sobre o negro do céu que desaba na hora fatal!
Apesar de não ter sido o primeiro que vira, Belo entrou, ainda chocado, em casa com tudo o que havia presenciado, com tudo o que estava preso ao negativo, ainda na máquina. Pousou-a na única estante que decora o estúdio sombrio, desajeitado, desarrumado onde vive (?) e estendeu-se ao comprido no sofá negro que vestia a carpete que por sua vez vestia o chão, onde havia improvisado uma espécie de sala. Deitado de barriga para cima, não conseguia evitar que as lágrimas lhe beijassem o rosto de pele ebúrnea, enquanto recordava tudo o que o assombrara essa noite. Adormecera por fim ...




Acordou era já alto dia com o sol que o espiava através das persianas, devolvendo àquele lugar um pouco de sorte! Ainda perturbado ergueu o corpo deitado e, como que de uma rotina se tratasse, pegou na máquina, atravessou o estúdio forrado de fotografias a preto e branco que formavam um padrão estranho, tumultuoso e dolorido, dirigindo-se à improvisada câmara escura. Certifica-se que o revelador está à temperatura adequada, toma atenção à hora antes de começar. Mergulha o papel no revelador com a emulsão para baixo, depois com uma pinça vira-o para cima. Agita a tina suavemente para que o papel não deixe de estar em movimento, 30 a 40 segundos e a imagem aparece. Cuidadosamente com a pinça, pega o papel passando-o pelo banho de paragem e por fim levando-o ao fixador. 10 Minutos "et voilá", Belo pode acender a luz ...
Após terminado processo e de resultados na mão, ele observa cada fotografia de forma minuciosa. Toda uma recordação que o aterrorizava desde a noite passada voltava num ápice à superfície da sua lembrança. Sentia o medo apoderar-se do seu corpo frágil e trémulo de ossos esguios ligeiramente desproporcionais. Ao passo que substituía a foto que via por outra e as repetia uma segunda ou terceira vez, as gotas cristalinas que haviam escorrido pelas faces de Belo voltavam a tomar conta dos seus olhos sem força, sem vontade, sem vida ... Chorava ao ver o seu rosto reflectido na cara desaparecida do drogado suicida. Os seus olhos inchavam em tons avermelhados, à medida que se apercebia do que tinha feito na noite anterior. A dor percorria-lhe as veias já sem sangue, o coração já parado, a mente já liberta, o corpo já morto ... - --
Sentia-se perverso, enojado daquilo em que se havia tornado. Tinha vontade de voltar àquele lugar, àquele sítio onde tudo o que é negro se torna azul-cor­do-céu depois da injecção de droga que traz de volta o prazer. Queria morrer uma vez mais, de uma forma diferente! Matar-se! Não com a porcaria da droga, mas com um flash virado para si enquanto cravava a navalha no peito! Queria uma morte dolorosa, tamanha a vergonha que sentia de si mesmo ...
Percebia, então, que já não mais vagueava naquele mundo que julgava execrável e que era apenas uma alma penada que ninguém conseguiria vislumbrar. Vivia, agora, para ver a felicidade dos outros, que poderia ser a sua. Desejava morrer outra vez, doía demais viver naquele que era um caminho de penumbra no corredor entre a vida e a morte. Odiava ser um fantasma. Queria enterrar-se no mais fundo dos buracos da terra e ser devorado pelos mais esfomeados, devoradores caçadores minúsculos que lá viviam. Haveria forma de se morrer outra vez? Como matar um fantasma? Não sabia.
Belo ficara aprisionado naquele corpo diáfano ... (a mágoa, o arrependimento nunca mais o deixaram, sobreviveu apenas a vontade de ver tudo mudar, para preto ou para branco, mas nunca para azul).