terça-feira, 26 de agosto de 2008

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"o Grão Kan possui um atlas em que todas as cidades do império e dos reinos circunvizinhos estão desenhadas palácio a palácio e rua a rua, com as muralhas, os rios, as pontes, as portas, os rochedos. sabe que dos relatórios de Marco Polo não vale a pena esperar notícias desses lugares que de resto ele bem conhece: que em Calambuc, capital da China, há três cidades quadradas umas dentro das outras, com quatro templos cada uma e quatro portas que se abrem conforme as estações do ano; que na ilha de Java o rinoceronte ataca com o seu corno mortífero; que se pescam pérolas no fundo do mar na costa de Malabar.


Kublai pergunta a Marco: - quando tornares ao Poente, repetirás à tua gente as mesmas histórias que me contas a mim?


- eu falo falo - diz Marco, - mas quem me ouve só fixa as pérolas que deseja. outra é a descrição do mundo a que dás benignos ouvidos, outra a que correrá os grupos de estivadores e gondoleiros nos canais da minha cidade no dia do meu regresso, e outra ainda a que poderei ditar em tardia idade, se fosse feito prisioneiro pelos piratas genoveses e posto a ferros na mesma cela com um escrivão de romances de aventuras, quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.


- às vezes parece que a tua voz me chega de longe, enquanto estou prisioneiro de um presente vistoso e invisível , em que todas as formas de convivência humana chegaram a um extremo do seu ciclo que não se podeimaginar que novas formas tomarão. e oiço pela tua voz as razões invisíveis de que viviam as cidades, e pelas quais talvez, depois da morte, reviverão."





CALVINO, Italo; As Cidades Invisíveis; Lisboa: Editorial Teorema; 2006


ISBN 972-695-374-X