Hoje
Os mesmos dois sofás. Ainda os cobre o veludo vermelho. Está sujo e gasto. As palavras delas também. O tempo passou e deixou as suas marcas.
Os lábios vermelhos e as unhas negras ainda se mantêm, como a inércia do tempo de adolescência. E os sofás, antes novos e duros, moldam-se agora aos corpos. São duas.
O tempo de conversas animadas sobre assuntos banais ficou-se pelo passado, já não marca o passo no presente. As duas de preto, o sorriso encarnado forçado na boca e o sarcasmo enrolado na língua. Sempre foram boas de palavras, carinhosas ou amargas, sinceras.
1893
Consigo vê-las descer a rua com o andar em contra-tempo, como se não existissem espaços vazios. Um passo de cada vez para que pelo menos o chão que pisam se sinta completo. Não falam. Ela leva os ouvidos cheios de música, tão cheios (!) (nada mais interessa). Decrépito, tudo o resto, decrépito. Valem apenas as veias que lhe palpitam, cheias de alguma coisa que nem ela sabe bem o que é. Cresce-lhe uma força desumana, às vezes cruel. Ela esquece a melodia do andar e desata a correr, de uma forma desorientada, descompassada. Esquece a companhia. Corre. Corre mais. Corre ainda mais. Tropeça quando acorda do estado de psicose e cai. Cai no chão. Na rua. Numa rua. Desconhecida. Implora o anonimato mas sente-se o centro do mundo. Centro do mundo de quem a olha. E todos a olham. A cabeça rodopia, o olhar perde-se, inverte-se. Agonia. As meias pretas rasgaram-se e os joelhos esmagados contra o chão deixam escorrer sangue. De novo preto e vermelho. A deliciosa combinação. Morte e luxúria. A perversidade da outra cresce-lhe na visão da sua própria dor. Reflexo de salivação. Água na boca, para quem não perceber. O olhar torna-se concupiscente. Observar as pessoas a verem-na no seu acto mais masoquista. Ou mais sádico. Se por um lado o sangue jorrado pela ferida lhe provoca uma sede ardente, quase libidinosa, toda aquela cerimónia à sua volta, feita de histerismos de mulheres inquietas, a corrompe. É sarcasmo puro. E prazer. Muito. Mas não é ela. É a outra. Ou eu. Como quiserem.
Não a alcancei porque fiquei para trás e não a vi cair. Escapei-me por outra rua. Para infectar mais pessoas. Fixar-me nelas. Deleitar-me. Criar arrepios nervosos. Vê-las reprovarem-me quando cruzam olhares comigo. Eu sorrio e roubo mais um pedaço de inocência. A uma criança, adolescente ou adulto. Tudo serve, tudo se perverte. Enquanto caminho recolhendo pedaços de pureza dos outros que me enchem o ego, recordo-a. Ela nunca me deixa. É quase platónico. Talvez a minha única fracção de virgindade lhe pertença. A ela. É preciso fechar os olhos, eu preciso. Deixo-me cair no passeio, contra o muro. Já não faz sentido (nada faz sentido), só ela. Onde andará? Nem recordo o momento em que nos separámos. “Merde”! (se me permitem, em francês para não parecer tão rude). Eu não sei o que (eu) quero. Mas hoje, ela queria ficar sozinha, pensar. E eu não devia tê-la deixado. Não. Penso, sem formular qualquer raciocínio. Não consigo sequer somar 2+2. Pelos dedos, dois numa mão, dois noutra. Um, dois, três, quatro. Traição. Ficar. Não.
Já fujo, corro, galgo as ruínas da minha cidade infectada, num combate interior de medo e culpa antecipada. Onde andará? Pensa. Pensa. Só me resta confiar na intuição. Em casa. Agora chove, chovem-me em cima os remorsos. A rua de paralelo não me ajuda nesta odisseia interna. Falham-me os joelhos e quebra-se a força. Não posso cair. Não posso. Ela já não está longe e precisa de mim. Ou eu preciso dela, já não sei. Este último corredor de 15 metros assusta-me. Perturba-me.
Ela nem fechou a porta, está entreaberta. Sinto o gelo privar-me do movimento. Em estado líquido já só restam as lágrimas. “Linda Martini”, ouve-se pela porta.
Estou à sua frente. Está no chão, parou ali. Está nua, sentada na carpete. A posição do seu corpo enfraquecido, de joelhos ao peito, deixa à mostra as articulações esmurradas. Ela também chora como eu, mas tem espalhado à sua frente um leque de navalhas e facas. Vê-me com a doçura daquele olhar cheio de uma ansiedade angustiante e canta-me “Dá-me a tua melhor faca para cortarmos isto em dois e amanhã esquecer”.
“(…) Então o sol pôs-se ; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me (…), morto de cansaço. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde azul, negro. (…) Eu, sozinho e tremendo de medo, senti o grito imenso, infinito, da natureza.”
Vi-a cravar a navalha nos pulsos e senti a revolta imensa do mundo exterior abater-se sobre mim, num grito insonoro. Munch pintava um quadro, eu bebia-lhe o sangue que se derramava. Fiquei a vê-la desfalecer ao último suspiro. Beijei-a nos lábios e hauri os 21 gramas que ainda lhe restavam a mais dentro do corpo. Eu. Ela. Coexistimos agora. A partir de agora. Mas deixo o corpo ao abandono, naquele campo. Ali. Onde tu, que lês, não sabes onde fica. Não a encontrarás. Ela pertencer-me-á sempre, para sempre.
Hoje
A perversidade não me deixou. Não lamento o meu egoísmo de quando vi o meu mundo morrer para se tornar parte de mim. Viver permanentemente com ela, dentro dela, será uma prova do meu amor? Ou serei apenas mais uma ególatra? Os sofás mantêm-se e eu sento-me num deles. Ainda uso os mesmos lábios encarnados e manchados de escárnio. Restou o que sempre existiu entre nós. Silêncio. Um silêncio. O nosso silêncio.
“SILÊNCIO!” Toma-me ela o corpo, agora, e irá escrever para aqueles que um dia conseguirem aceitar esta condição. Este amor ou forma de amar.
quinta-feira, 26 de junho de 2008
Subscrever:
Mensagens (Atom)