quinta-feira, 26 de junho de 2008

Descompassos acompanhados de incoerências uno-existênciais

Hoje

Os mesmos dois sofás. Ainda os cobre o veludo vermelho. Está sujo e gasto. As palavras delas também. O tempo passou e deixou as suas marcas.
Os lábios vermelhos e as unhas negras ainda se mantêm, como a inércia do tempo de adolescência. E os sofás, antes novos e duros, moldam-se agora aos corpos. São duas.
O tempo de conversas animadas sobre assuntos banais ficou-se pelo passado, já não marca o passo no presente. As duas de preto, o sorriso encarnado forçado na boca e o sarcasmo enrolado na língua. Sempre foram boas de palavras, carinhosas ou amargas, sinceras.

1893

Consigo vê-las descer a rua com o andar em contra-tempo, como se não existissem espaços vazios. Um passo de cada vez para que pelo menos o chão que pisam se sinta completo. Não falam. Ela leva os ouvidos cheios de música, tão cheios (!) (nada mais interessa). Decrépito, tudo o resto, decrépito. Valem apenas as veias que lhe palpitam, cheias de alguma coisa que nem ela sabe bem o que é. Cresce-lhe uma força desumana, às vezes cruel. Ela esquece a melodia do andar e desata a correr, de uma forma desorientada, descompassada. Esquece a companhia. Corre. Corre mais. Corre ainda mais. Tropeça quando acorda do estado de psicose e cai. Cai no chão. Na rua. Numa rua. Desconhecida. Implora o anonimato mas sente-se o centro do mundo. Centro do mundo de quem a olha. E todos a olham. A cabeça rodopia, o olhar perde-se, inverte-se. Agonia. As meias pretas rasgaram-se e os joelhos esmagados contra o chão deixam escorrer sangue. De novo preto e vermelho. A deliciosa combinação. Morte e luxúria. A perversidade da outra cresce-lhe na visão da sua própria dor. Reflexo de salivação. Água na boca, para quem não perceber. O olhar torna-se concupiscente. Observar as pessoas a verem-na no seu acto mais masoquista. Ou mais sádico. Se por um lado o sangue jorrado pela ferida lhe provoca uma sede ardente, quase libidinosa, toda aquela cerimónia à sua volta, feita de histerismos de mulheres inquietas, a corrompe. É sarcasmo puro. E prazer. Muito. Mas não é ela. É a outra. Ou eu. Como quiserem.
Não a alcancei porque fiquei para trás e não a vi cair. Escapei-me por outra rua. Para infectar mais pessoas. Fixar-me nelas. Deleitar-me. Criar arrepios nervosos. Vê-las reprovarem-me quando cruzam olhares comigo. Eu sorrio e roubo mais um pedaço de inocência. A uma criança, adolescente ou adulto. Tudo serve, tudo se perverte. Enquanto caminho recolhendo pedaços de pureza dos outros que me enchem o ego, recordo-a. Ela nunca me deixa. É quase platónico. Talvez a minha única fracção de virgindade lhe pertença. A ela. É preciso fechar os olhos, eu preciso. Deixo-me cair no passeio, contra o muro. Já não faz sentido (nada faz sentido), só ela. Onde andará? Nem recordo o momento em que nos separámos. “Merde”! (se me permitem, em francês para não parecer tão rude). Eu não sei o que (eu) quero. Mas hoje, ela queria ficar sozinha, pensar. E eu não devia tê-la deixado. Não. Penso, sem formular qualquer raciocínio. Não consigo sequer somar 2+2. Pelos dedos, dois numa mão, dois noutra. Um, dois, três, quatro. Traição. Ficar. Não.
Já fujo, corro, galgo as ruínas da minha cidade infectada, num combate interior de medo e culpa antecipada. Onde andará? Pensa. Pensa. Só me resta confiar na intuição. Em casa. Agora chove, chovem-me em cima os remorsos. A rua de paralelo não me ajuda nesta odisseia interna. Falham-me os joelhos e quebra-se a força. Não posso cair. Não posso. Ela já não está longe e precisa de mim. Ou eu preciso dela, já não sei. Este último corredor de 15 metros assusta-me. Perturba-me.
Ela nem fechou a porta, está entreaberta. Sinto o gelo privar-me do movimento. Em estado líquido já só restam as lágrimas. “Linda Martini”, ouve-se pela porta.
Estou à sua frente. Está no chão, parou ali. Está nua, sentada na carpete. A posição do seu corpo enfraquecido, de joelhos ao peito, deixa à mostra as articulações esmurradas. Ela também chora como eu, mas tem espalhado à sua frente um leque de navalhas e facas. Vê-me com a doçura daquele olhar cheio de uma ansiedade angustiante e canta-me “Dá-me a tua melhor faca para cortarmos isto em dois e amanhã esquecer”.
“(…) Então o sol pôs-se ; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me (…), morto de cansaço. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde azul, negro. (…) Eu, sozinho e tremendo de medo, senti o grito imenso, infinito, da natureza.”
Vi-a cravar a navalha nos pulsos e senti a revolta imensa do mundo exterior abater-se sobre mim, num grito insonoro. Munch pintava um quadro, eu bebia-lhe o sangue que se derramava. Fiquei a vê-la desfalecer ao último suspiro. Beijei-a nos lábios e hauri os 21 gramas que ainda lhe restavam a mais dentro do corpo. Eu. Ela. Coexistimos agora. A partir de agora. Mas deixo o corpo ao abandono, naquele campo. Ali. Onde tu, que lês, não sabes onde fica. Não a encontrarás. Ela pertencer-me-á sempre, para sempre.

Hoje

A perversidade não me deixou. Não lamento o meu egoísmo de quando vi o meu mundo morrer para se tornar parte de mim. Viver permanentemente com ela, dentro dela, será uma prova do meu amor? Ou serei apenas mais uma ególatra? Os sofás mantêm-se e eu sento-me num deles. Ainda uso os mesmos lábios encarnados e manchados de escárnio. Restou o que sempre existiu entre nós. Silêncio. Um silêncio. O nosso silêncio.
“SILÊNCIO!” Toma-me ela o corpo, agora, e irá escrever para aqueles que um dia conseguirem aceitar esta condição. Este amor ou forma de amar.

4 comentários:

OGC disse...

Este já é antigo.
Conheço-o.
E conheço-te.

«És grande.»

:)

Anónimo disse...

Não conhecia...

Uma vez queixaste-te de que os meus textos eram grandes mais (se não foste tu desculpa) e quem é a besta agora? ;P

Anónimo disse...

adorei mnha filha!
para [nao] variar amei ler o que escreves, mas fazia algum tempo que nao sentia tanto as palavras como neste "pedaço" de ti...

nao sei que mais dizer, ando em dia nao faz muito tempo, se calhar as palavras estao zangadas comigo. mas mesmo assim nao me importo muito, tu sabes que te adoro "despir" [salvo seja] enquanto leio estes teus textos tao belos, por isso nao é preciso palavras. nao achas?

orgulho em ser teu pai *

kiss*

violent.femme disse...

R.:
oh! :') merci, mon papa!
as deixa la a parte do me despir que esta frio :p

bisou-violette*