quarta-feira, 26 de março de 2008

Quando o suicídio contemplado é apenas fruto mórbido do amor

A fuga à insanidade é constante. Julgar o que é normal ou anormal torna-se difícil quando a discórdia assenta no ponto fulcral da vida em sociedade.

Shelly contorcia-se na cama redonda do quarto, num apartamento emprestado para uma cura, a sua. Não iria chegar o dia em que a pequena de 18 anos se viria livre daquele tão maldito vício. Consumia-a todos os dias, três ou quatro vezes por dia. Não o conseguia evitar. Não alimentar esta necessidade era viver em vão para a rapariga de cabelo escadeado e encaracolado pelos ombros. A sua pele, antes branca, apresentava agora uma tez escurecida devido às horas fora de transe passadas na varanda ao sol. Mas tudo são pormenores desnecessários quando se sabe que a importância da vida de alguém se resume a um quarto de cama redonda. E lá estava ela, deitada de forma irregular - quase chegava a formar um desenho engraçado pelas saliências e depressões causadas pelo corpo sob o lençol -. Era branco, o lençol. Do tecto pendiam rendas, muitas rendas, vermelhas, lilases, brancas, sujas… que encontravam o chão num tremendo reboliço de panejamentos e pó. As paredes estavam rabiscadas de motivos bizarros. Corpos mutilados, andares escancarados, anorexias esqueléticas, palavras sem-ordem, fotografias rasgadas, mesclas de estados psicológicos unidos por linhas de lã juntas por nós defeituosos.

Nada fazia sentido naquele compartimento não fosse o corpo que lá se encontra. Shelly procurava controlar a vontade de uma nova dose, como tentava todos os dias. A fuga eram as paredes, o chão, o tecto, os lençóis rasgados, as unhas cravadas na pele, a garrafa de whisky na mesa-de-cabeceira, ou mesmo a borboleta estendida do lado da almofada já esfaqueada. Da vez que golpeara o travesseiro ainda não tinha chegado à fase física. Tal comportamento sugeria uma determinação niilista de pressionar o botão da auto-destruição. Os distúrbios emocionais e as esquizofrenias nervosas faziam-na ir para além dos limites do entendimento humano. Era especial. Ela. E os espíritos malignos não a abandonavam e ela não conseguia combater esta dependência. Toda esta atitude a encaminhava para uma morte prematura, fosse ela hoje, amanhã ou depois…

Por vezes a alienação fazia-a delirar. Desenhava pentagramas invertidos nas paredes e gritava para o infinito dizendo-se possuída por bruxas. Estava na hora de outra porção. Mais uma vez nada conseguira fazer para travar o vício que avançava para ela como que fugindo de uma morte não anunciada. Sem garrote nem agulha, sem mortalhas ou filtros, ela injectava-se e fumava a sua droga invisível, dominadora e persuasiva. Mais um estado de voo mental, pela pior acepção da expressão. Não voava sobre um ninho de cucos nem via espaços amplos decorados com motivos arabescos, carpetes longas e incensos queimados, criadores de efeitos quase alucinogénicos nos presentes. Pelo contrário, entrava num estado de êxtase psicótico desvairado, sem controlo mental ou racional. Agia por impulso e chorava. Ou rasgava. Ou mutilava, o próprio corpo. E é assim que está a ser hoje, agora.

São cinco horas de uma manhã que chora lágrimas de sangue que teimam em cair nos lençóis de Shelly. Cai o líquido vermelho do céu. Cai o suco da vida através do seu peito. Jorram-se gotas contínuas de sangue pela camisa de noite. A isto, eu chamo um acto falhado. Uma navalhada falhada, em cheio no coração.

Poucos segundos lhe restam, o final de vida precoce deixou-se ver hoje como lição final. O ponto final contemplando o suicídio.

Ironia das ironias, a sua droga era apenas um estado de depressão ao qual ela dedicava parte do seu dia, e mesmo assim lhe consumiu a vida, levando-a ao Purgatório dos juízos em que nem ela acreditava. A derradeira sentença não será favorável a uma nova vida de sanidade mental. Roubar a vida a nós próprios ainda é considerado pecado dotado de uma excentricidade maléfica. O caminho será o do fogo. Da maldição. Talvez o seu estado de morte cerebral já tivesse sido decretado em vida, naquele apartamento, naquele quarto. Uma nova era se iniciará, um novo apartamento, numa nova cama, porque os monstros que nos assombram são eternos como a dor profunda que sentimos ao perder um grande amor. Porque “o fogo que arde sem se ver” não se apaga e nós ficamos para sempre presos na dura realidade da solidão, do abandono. E todos parecem estranhos, até mesmo o mais sincero dos amigos, pois a única coisa que o nosso olhar alcança é o do desejo que ver o amor (dele) voltar. É querer sair do estado de paranóia e voltar a ser feliz.



14 Julho de 07

10 comentários:

Anónimo disse...

lindo *

["O ponto final contemplando o suicídio." Eu nao me lembro de ter contemplado qualquer suicidio nos ultimos tempos. Ou talvz ja nao o queira ver minha filha!]

O texto, como sempre, está lindo. Muito teu! A ultima parte fez-me lembrar uma coisa bem gira, o "Constantine", de um modo mais..."psico-pesado", por assim dizer.
Mas neste caso, seria uma especie de "Violettine"! xD

keep on*

KIss
*

Anónimo disse...

esta forte.

saberia que terias sido tu a escreve.lo, tem as tuas marcas, tem o "bichinho" a que nos habituas.te nos teus contos...

bisou *

Anónimo disse...

não gosto de fazer críticas e julgo não as saber fazer. gosto. ponto. eu cá não sou intelectual. eheh! [private joke]

comprei hoje um livro. "a loja dos suicídios".
"«É uma lojinha onde nunca entra um raio de sol.» Imagine um negócio de família que envolve a venda de todos os ingredientes possíveis para a prática do suicídio, nas suas mais diversas formas. Corda, pistolas, facas, venenos e toda uma panóplia de produtos mortíferos. São cinco as personagens que compõem esta família atípica que gere a loja há várias gerações: os pais, profissionais, comerciantes; o filho primogénito, deprimido crónico mas extremamente criativo no seu domínio; a irmã, exemplo típico da adolescente inadaptada; e finalmente o irmão mais novo, verdadeiro grão de areia na engrenagem deste comércio lúgubre: é que ele atreve-se a sorrir e a ser... optimista. Com uma ambiência digna de um filme de Tim Burton, "A Loja dos Suicídios" é uma comédia negra futurista que invoca o grande adversário da família Tuvache e do seu sinistro empreendimento: a alegria de viver."

Pedro Correia ou Poeta Acácio disse...

digamos que a minha veia intelectual não tá a "funceminar" muito bem, mas vou tentar dizer qualquer coisa brilhantemente sem importância, mas carregada de um sentimento e uma estupidez tais, capazes de fazer chorar e rir (só esta parte já anteve o brilhantismo do meu pensamento estrábico) as pedras mais negras da calçada... Ora cá vai:

LINDO!!!!!!!!!

O que me deixou mais a pensar foi a droga da moçoila: depreção... é nova? hehehe

É o que eu digo, se ao invés destas moderenices, a miuda andasse na missinha e fosse à catequese todos os santos Domingos, não acontecia nada disso! Juventude é o que é! hehehehe

TENHO DITO (em jeito de paizinho por demais envolvido em sentimentos labregos)

Pedro Correia ou Poeta Acácio disse...

correcção:
depressão... e a merda do teclado volta a f*dr o negócio todo!

TENHO DITO

violent.femme disse...

r. :
Querido pai,
por acaso não gostei muito do Constantine, tem pequenos pormenores muito bons, bem como algumas personagens mas em geral não gosteis muito, mas tá bem eu sei que foi um elogio :p
E até gosto do título de Violettine ^^ talvez o use numa das minhas próximas caçadas a demónios para dizer:

THIS IS VIOLETTINE. JOANA VIOLETTINE, ASSHOLE!!

ju*:
obrigada pequeno habitante da Gnomolandia :) mas às vezes tenho medo que seja mau que as pessoas reconhecam os meus textos, pode significar que nao sou versatil... : /

. :
Delicioso, deliciosamente delicioso! (ai que aquilo correu tão mal, minha Dama) xD

Pedro Correia ou Poeta Acácio:
É o que dá não seguir os exemplos da mãe. Se eu os segisse ia à missinha e nunca coisas destas passariam pelo menu imaginário mas também sempre tive a mania de ser do contra :p

*

Mensageiro disse...

Tu já sabes o que eu acho dos teus textos. Dão-me o nó ao cérebro. Mas também já te disse que gosto deles... Na verdade gosto de ter o cérebro confuso. Será que a tua míuda também gostava?

violent.femme disse...

mensageiro:
creio que sim. :)

j. disse...

o primeiro passo para sair da paranoia é esquecer o verbo "pensar" e abrir a porta ao verbo "sentir". e que grande porta que se abre.

violent.femme disse...

joana:
Consegues sentir sem pensar?