terça-feira, 26 de agosto de 2008

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"o Grão Kan possui um atlas em que todas as cidades do império e dos reinos circunvizinhos estão desenhadas palácio a palácio e rua a rua, com as muralhas, os rios, as pontes, as portas, os rochedos. sabe que dos relatórios de Marco Polo não vale a pena esperar notícias desses lugares que de resto ele bem conhece: que em Calambuc, capital da China, há três cidades quadradas umas dentro das outras, com quatro templos cada uma e quatro portas que se abrem conforme as estações do ano; que na ilha de Java o rinoceronte ataca com o seu corno mortífero; que se pescam pérolas no fundo do mar na costa de Malabar.


Kublai pergunta a Marco: - quando tornares ao Poente, repetirás à tua gente as mesmas histórias que me contas a mim?


- eu falo falo - diz Marco, - mas quem me ouve só fixa as pérolas que deseja. outra é a descrição do mundo a que dás benignos ouvidos, outra a que correrá os grupos de estivadores e gondoleiros nos canais da minha cidade no dia do meu regresso, e outra ainda a que poderei ditar em tardia idade, se fosse feito prisioneiro pelos piratas genoveses e posto a ferros na mesma cela com um escrivão de romances de aventuras, quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.


- às vezes parece que a tua voz me chega de longe, enquanto estou prisioneiro de um presente vistoso e invisível , em que todas as formas de convivência humana chegaram a um extremo do seu ciclo que não se podeimaginar que novas formas tomarão. e oiço pela tua voz as razões invisíveis de que viviam as cidades, e pelas quais talvez, depois da morte, reviverão."





CALVINO, Italo; As Cidades Invisíveis; Lisboa: Editorial Teorema; 2006


ISBN 972-695-374-X

2 comentários:

Dália Dias disse...

O LIVRO DO INVISÍVEL SILÊNCIO

O título As cidades invisíveis, o livro do italiano Italo Calvino (1923-1985), faz a solicitação de um trabalho de leitura fortemente activo, convidando quem se dispuser a participar na construção de uma série de mundos possíveis e, ao mesmo tempo, impossíveis. Estes mundos, configurados nas cidades imaginárias absolutamente fantasiosas, representam lugares que se revelam incapazes de gerar outros lugares que reconheçamos como realidades hipotéticas. Os lugares invisíveis apresentam-se, de facto, como bizarras arquitecturas suspensas, ocultas, subterrâneas ou transparentes. Têm nomes como Esmeraldina, Zaira ou Adelma. Eles são constituidos, na verdade, pelas cidades descritas/inventadas pelo viajante veneziano Marco Polo, que conta ao imperador dos tártaros, Kublai Kan, o que terá visto ao longo das suas fabulosas missões.
O percurso de leitura que aqui sugerimos assenta numa observação óbvia: se as cidades são invisíveis, então como podem ser descritas? Como poderão ter sido vistas por um homem, no caso o viajante renascentista da rota da seda? Por outro lado, como diz o narrador – que esclarece qual é o dialogante dispositivo narrativo das histórias de Marco Polo, aquela voz sem rosto cuja presença fica assinalada nos capítulos em itálico –, “nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo....”
Parece-nos que tais cidades não têm outra existência que não seja a da própria linguagem e tais arquitecturas são modelos verbais apenas capazes de corresponder a imagens de pensamento que vamos construindo e reconhecendo. Tal como acontece com as perspectivas de M. C. Escher – que desenhava impossíveis casas, impossíveis arquitecturas e impossíveis mundos visuais – estes lugares são lugares de renúncia, consequentemente abandonados enquanto tentativa de conhecimento e compreensão. Talvez por isso quem deles fala seja o mais famoso viajante de sempre, aquele que sabe melhor do que ninguém que viajar, como escreveu Pessoa, é perder países e ser outro constantemente.
Explica-se, pois, por que razão, no original e inclassificável livro de Calvino, a sucessão de curtos capítulos em itálico assume um papel fundamental. O narrador neles vai dando conta da transformação da relação entre as duas personagens dialogantes. Ficamos então na posse de uma série de dados importantes: no início Kublai Kan escutava o mercador sem perceber a língua em que ele falava, deixando-se somente embalar pela sua exuberante gestualidade e pelos gritos que lhe ouvia. À medida que Marco Polo foi dominando a língua tártara, o imperador ia decifrando melhor os sinais, mas pouco entendia do nexo que entre eles se estabelecia. Tal obscuridade era particularmente estimulante e Kublai Kan preferia ainda assim os relatórios de Polo a qualquer um feito pelos outros seus emissários. No suposto diálogo estabelecido o mercador imaginava responder aos anseios do imperador e este, por sua vez, imaginava que lhe respondiam. Com o crescer do entendimento entre eles, durante as suas conversas, iam permanecendo a maior parte do tempo calados e imóveis. A partir de certa altura, Kublai Kan começa também a descrever cidades que nunca tinha visto...
Regressemos então à invisibilidade de todas estas cidades. A sua condição assinala, afinal, o reconhecimento do impossível da representação, pela linguagem, de qualquer cidade, sejam as imaginadas por Marco Polo, seja a sua adorada Veneza. O que aqui se interroga, e corresponde a uma das linhas de leitura deste livro e em boa parte da obra de Calvino, é o poder evocativo da linguagem, ou ainda o valor testemunhal de um relato que represente absolutamente qualquer mundo.
Na linguagem nada é transparente, mesmo quando parece sê-lo. Não custa admitir, portanto, que no mágico labirinto simbólico que as narrações do mercador foram criando, acabasse por imperar o silêncio, último reduto do atlas imaginário das invisíveis cidades, na sua existência de palavras.

Dália Dias (artigo publicado sobre o tema, já há algum tempo). Continuamos a gostar das mesmas coisas...

OGC disse...

[Viva a nós! :)]